terça-feira, 23 de março de 2010

Telhado velho com goteiras

É certo que hoje tenho uma bela banheira, com muita água quente aquecida a gás, onde os banhos são deliciosos... uma cama fofa e gostosa, na qual diariamente me deito bendizendo aos deuses por tê-la, enquanto tantos dormem ao relento. Meu escritório não poderia estar melhor: equipado com toda a tralha tecnológica necessária ao trabalho e amplas janelas que dão para o jardim. As paredes da casa estão sempre impecáveis, portas e janelas são novas e de boas madeiras e os quadros na parede - todos, sem exceção - estão emoldurados.

Quanta mudança em comparação àquela velha casinha de 25 anos atrás! Com vitrôs emperrados, sofás velhos e encardidos e quadros sem molduras nas paredes (porque sempre gostei de paredes enfeitadas, mesmo quando eram apenas fotos ou gravuras bonitas retiradas de revistas e calendários...).

Mas olhando o belo telhado de agora, de telhas novas, pé-direito mais alto e isolamento térmico.... e comparando com o antigo - metade apenas em lajes, metade de telhas velhas, algumas quebradas, cujo madeiramento já havia cedido ao peso dos anos e formava barrigas que deixavam a água da chuva passar para dentro - eu concluo que foi uma conquista, um progresso... uma verdadeira vida economicamente bem-sucedida.

Mas será?
Embaixo daquele velho telhado havia muito mais vida, sonhos, alegrias, apesar das dificuldades. A correria para mudar as camas de lugar quando chovia... os panos e baldes para "aparar" as goteiras e a escalada ao velho telhado, no dia seguinte à chuva, para trocar telhas quebradas - ou rearrumar as deslocadas pelos gatos em suas travessuras. Em dois quartos, cinco crianças se distribuíam em 2 beliches e um berço, dividindo dois guarda-roupas, duas a duas... Brigavam, choravam, riam e, tenho quase certeza absoluta, eram tão felizes como eu.

Não havia um escritório com notebooks, wireless, TV a cabo nem se conhecia o Wii. Mas no quintal se viam muitas bolas (algumas devolvidas furadas após caírem no quintal do vizinho que detestava crianças), raquetes, cordas, amarelinha, panelinhas, fogãozinho de tijolo, centenas de bolinhas de gude e tanta coisa mais... E dentro de casa, um mágico e velho piano, flautas de madeira, gaita e até um trompete (que ninguém sabia tocar) e um violino tamanho infantil (muito pouco usado, na verdade). Sem falar nos sempre presentes e numerosos livros, revistas, papéis, lápis e tintas e jogos divertidos como dama, ludo, resta um e cartas de mico e memória!

Eu tinha tempo até para costurar, bordar, contar histórias, cantar músicas de roda na hora de dormir, compor músicas para animar banhos e refeições e até para alfabetizar meus filhos! E, ao contrário da calma da rua em frente, que era de terra e onde só se ouviam risos de brincadeiras de crianças e latidos, aqui em casa havia um movimento constante.

Sempre alguém chegando ou saindo... fosse para ou da escola, da casa dos amigos vizinhos ou com eles de volta. Música variando de estilos - de Beatles a Caetano, passando por Queen e Abba - no toca-discos ou em fitas. Nem dava tempo para fechar a porta, muito menos de trancar qualquer portão! E os almoços e lanches jamais tinham número certo... poderia haver na mesa mais ou menos pratos que os habitantes da casa... os vizinhos e amigos sabem bem!

Hoje o silêncio e o ruído trocaram de lugar. Não é bizarro? Aqui dentro tudo é tranquilo, silencioso (até demais, já que quatro filhos já "cresceram e mudaram"); enquanto da porta para fora, agora uma larga rua asfalto - até com lombada para acalmar apressados - o ruído das freadas é constante, sirenes, pessoas que se expressam aos berros, carros-baladas (que acreditam que adoro as mesmas músicas que eles), sem falar nos eventuais acidentes e brigas. Praticamente nenhuma voz de criança, quase nenhuma risada gostosa.

E o pior é que aqui dentro também não há quase mais risadas gostosas. A exceção é quando os netos vêm visitar. Pouca gente na casa, poucos gatos, nenhum cachorro, a cabeça em impostos, juros bancários, cartões de crédito, contador, contas a pagar e, apesar de milhões de horas a mais de trabalho do que antes, muito menos dinheiro a receber e quase nada de lazer. Sem tempo para ver as árvores, as flores do jardim, sem tempo para papear com os vizinhos... passando os dias sentada à frente da tela do computador e sempre resolvendo alguma coisa "muito urgente".

Restou o prazer do banho na banheira e do cair na cama gostosa diariamente, mas sempre morta de cansaço e com a cabeça cheia de "caraminholas" (expressão roubada da Emilia, do Monteiro Lobato). Quer saber? Dane-se essa vida economicamente bem-sucedida. Eu gostava mais do telhado velho com goteiras.